Acidentes por eletrocussão com gavião-real preocupam pesquisadores de RO
Desmatamento na Amazônia afeta na reposição de indivíduos da ave de rapina. Harpia está classificada como vulnerável à extinção e criticamente em perigo nos estados da Mata Atlântica, segundo ICMBio.

Publicado 31/10/2020
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Os acidentes de espécimes do gavião-real por eletrocussão preocupam um grupo de pesquisadores e voluntários em Rondônia que trabalham na proteção da ave de rapina. Considerada a maior águia das Américas, a Harpia harpyja já é comumente rara de se ver na natureza e a supressão florestal da Amazônia afeta diretamente na reposição desses indivíduos no bioma, segundo especialistas.

"A redução do habitat florestal utilizado pela harpia e a presença de infraestruturas dentro da área utilizada por esta espécie, provavelmente aumentam as chances de encontros homem-harpia e da harpia com as linhas e postes de transmissão de energia elétrica. Por exemplo, harpias juvenis em dispersão do ninho podem passar por áreas com linhas de transmissão e sofrerem acidentes fatais nessas estruturas, ou serem alvo de disparo de arma de fogo", detalhou a bióloga Helena Aguiar-Silva, membro do Projeto Harpia, que desenvolve pesquisas há 15 anos com a espécie e outras aves.

Os impactos ecológicos causados por esse tipo de acidente foram relatados em um artigo publicado recentemente na revista internacional Journal of Threatened.

Na nota científica, o grupo descreve o acidente de uma espécime fêmea de harpia encontrada morta em uma estrada de Alta Floresta D’Oeste (RO) e o usa como alerta. Segundo o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), a Harpia harpyja é alvo de caça e perseguição.

"Perder um indivíduo de uma espécie rara e ameaçada de extinção impacta a sua população. Nós já observamos que este evento de eletrocussão de uma fêmea jovem causa um prejuízo para a espécie, pois essa ave poderia estar reproduzindo na natureza", explicou Almério Gusmão, pesquisador da Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat) e professor do Centro Técnico Estadual de Educação Rural Abaitará (Centec Abaitará), em Pimenta Bueno (RO).

O Projeto Harpia, criado há 23 anos no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), mapeou mais de 100 ninhos de harpia no Brasil e aproximadamente 40 são monitorados todo ano.

Em Rondônia, 21 ninhos de harpia foram mapeados e vem sendo monitorados pelos voluntários do núcleo de Rondônia do projeto. Este núcleo iniciou em 2008 no estado e tem ampliado sua atuação na região ao longo dos últimos 12 anos.

No caso de acidentes por eletrocussão, as chances de sobrevivência desses animais são reduzidas. O risco acontece primeiro porque o poste de energia está instalado na borda da floresta. Com a extração das árvores mais altas, utilizadas como poleiros pelas harpias, por exemplo, os postes estão proeminentes em relação à mata.

"E com essa altura do poste, a harpia vai pousar e sofrer essa descarga elétrica. Algumas delas morrem. O óbito sempre é o principal resultado entre a maioria dos casos já relatados. O importante também é a trajetória que levou esse espécime", complementou Almério Gusmão.

"Existem medidas para reduzir as chances de colisão e eletrocussão fatal em caso de contato. Ações amplamente utilizados em outras regiões da Europa e EUA, como por exemplo, sinalizadores em linhas de transmissão de energia elétrica, a proteção dos cabos elétricos por um material isolante", explicou Helena Aguiar-Silva.

O gavião-real, conforme o voluntário do projeto em Rondônia Carlos Tuyama, é uma ave territorialista e, normalmente, um casal da espécie requer uma área de pelo menos 50 km² de floresta para caça e reprodução, que acontece de três em três anos.

"90% da harpia que tem no mundo está no bioma amazônico brasileiro, principalmente norte do Mato Grosso e em Rondônia. Está entre os três maiores predadores aéreos do mundo e é uma espécie vulnerável. Em Rondônia, temos uma situação bastante preocupante, pois houve grande perda da cobertura florestal original. Fazemos o acompanhamento não só dos ninhos, mas de todas as ocorrências. O interesse é saber como eles estão desaparecendo", explicou Tuyama.

Acervo científico

O espécime retratado na nota científica foi levado a um laboratório da Universidade Federal de Mato Grosso para servir de acervo científico. O indivíduo foi encontrado pelo biólogo Danilo Degra em uma linha de Alta Floresta, em Rondônia, durante o percurso a uma escola para trabalho de educação ambiental.

A ave, segundo Danilo, foi vista caída na rodovia. O biólogo também notou um fio de energia perto da ave, o que supostamente possa ter sido o causador da morte da espécime. A fêmea não tinha marcas ou sangramento causado por disparo de arma de fogo, mas sim sinais de eletrocussão nas patas.

"Somos bem acostumados a encontrar animais nas rodovias por conta de acidentes, atropelamentos, inclusive aves. Mas era um bicho gigantesco. Percebi que era uma harpia e estava morta. A princípio desconfiamos que tinha sido por atropelamento, pois estava no meio da via, mas um animal daquele é difícil de se conseguir atropelar", relembrou.

A ave foi mantida em um freezer no laboratório do Centec Abaitará, em Cacoal, até ser transferida ao Mato Grosso para estudos. Segundo Almério Gusmão, o indivíduo serviu de ilustração nas aulas de biodiversidade do curso de agroecologia do Centec Abaitará.

A pele foi preparada para ser conservada e a ave está depositada na coleção zoológica da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). "Nós perdemos o espécime na natureza, mas ele teve a função de fazer as atividades práticas demonstrando uma espécie do topo de cadeia alimentar", reforçou o pesquisador.

O que pode acontecer em caso de extinção?

Por ser uma espécie predadora e topo da cadeia alimentar, a harpia, segundo Almério, consegue controlar a fauna de folívoros e frugívoros, como por exemplo, os primatas (macacos) que se alimentam de folhas e frutos. A falta desse controle poderia causar o aumento da população de primatas, o que aumentaria também o ataque por esses animais às lavouras dos moradores da zona rural.

"Ela é uma espécie muito importante no equilíbrio ecológico. A harpia realiza o controle natural das populações de herbívoros silvestres. Sua presença em uma área de floresta próximo à lavouras pode levar a diminuição de ataques de primatas", disse o pesquisador.

Apesar de estar na lista mundial de espécies ameaçadas de extinção como "Quase Ameaçada", no Brasil, de acordo com o Livro Vermelho da Fauna Brasileira do ICMBio, de 2018, a Harpia harpyja está classificada como vulnerável à extinção e criticamente em perigo nos estados da Mata Atlântica.

Mesmo com a situação menos crítica na Amazônia, estima-se que o declínio populacional, conforme o ICMBio, seja de no mínimo 30% em 56 anos. Espécimes da harpia também podem ser vistas, além da Amazônia e da Mata Atlântica, no Cerrado.

Ainda segundo o ICMBio, os indivíduos estão desaparecendo da natureza "pela caça, captura para criação em cativeiro, derrubada de árvore com ninho ativo pelo corte seletivo na exploração madeireira e impactos diretos de estradas, hidrelétricas e redes de transmissão e distribuição de energia".

Em nota, a Energisa, que é responsável por algumas linhas de alta tensão na região, informou estar comprometida "com o desenvolvimento sustentável de Rondônia e, apenas em 2020, investiu mais de R$ 6 milhões na instalação de redes protegidas para evitar acidentes com a fauna".

"Os episódios de acidentes com aves, porém, são relativamente raros já que, para a ocorrência de choque elétrico, é necessário que o corpo funcione como um condutor da energia. É o que ocorre, por exemplo, quando uma pessoa toca em um fio energizado e está em contato com o solo", complementou a empresa no texto.

Filhote em estrada rural

Um filhote de harpia, achado na beira de uma estrada rural, foi devolvido à natureza recentemente na região de Ariquemes (RO), Vale do Jamari. A ave de cerca de sete meses foi encontrada por um motorista no mês de setembro.

Segundo biólogos da Secretaria Municipal de Meio Ambiente, o filhote provavelmente caiu na beira da estrada quando tentava fazer os primeiros voos após a saída do ninho. Durante cerca de duas semanas, a ave recebeu tratamento na secretaria e, no fim de setembro, a equipe decidiu soltá-la na natureza.

Porém, antes de ser devolvida na natureza, foram instalados na harpia dois dispositivos de identificação e localização para que ela possa ser monitorada daqui pra frente. É o primeiro gavião real oficialmente cadastrado em Ariquemes e o primeiro a receber dispositivo de localização no estado de Rondônia.

Fonte: G1 RO